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A Peste e a Fome

Vivien Mello Suruagy

Há tanto simbolismo em torno do que estamos vivendo desde março deste ano, que se torna difícil enxergar a realidade material e buscar saídas racionais para os problemas que estes tempos nos impõem. “Pandemia” é um eufemismo, que traz consigo a assepsia da ciência, para ser usado em lugar do termo mais historicamente carregado: “Peste”. Vamos dar o nome correto a esse cavaleiro. A peste de 2020 vem matando e continuará nessa sanha enquanto a Humanidade não encontrar uma solução para o vírus que a causa. E vamos dar nome a outro cavaleiro que nos espreita, a Fome, que se avizinha caso não equacionemos bem os impactos da Peste.

Para mitigar o risco de morte, a vida social e a profissional foram transferidas para o mundo virtual das redes sociais e dos aplicativos de internet. Estamos longe da retomada da economia presencial. Empregos desapareceram, empresas desapareceram. Os orçamentos públicos implodiram por todo o mundo. Medidas foram e vêm sendo tomadas por governos para, de um lado, sustentar a oferta de produtos, bens e serviços enquanto não se tem como produzir sem sair de casa aquilo de onde cada um retira seu sustento; e para, de outro lado, fomentar a demanda quando a grande maioria das pessoas e das empresas estão sem caixa, sem poupança, sem salários, sem recebimentos, logo não têm como honrar seus compromissos civis, comerciais, tributários, trabalhistas - qualquer compromisso que envolva desembolso imediato, porque, sem rodeios, ninguém tem dinheiro.

Sem oferta e sem demanda não há economia. Interrompidas as cadeias de produção, de suprimento e de distribuição, o que é plantado no campo não será comido na cidade. Sem economia, as pessoas que vivem numa sociedade complexa – a bem dizer, nas cidades – morrerão de fome, porque não produzem a comida que ingerem.

A única solução é a ação coordenada entre Estado e agentes econômicos para sustentar a vida para vencer a peste. Muito tem sido feito, porém há frentes que ainda precisam da atenção do legislador e do Governo, para mitigar o impacto desta crise.

É fato: mais de 100 Medidas Provisórias foram editadas pelo Governo central desde março de 2020; milhares de decretos, resoluções e portarias foram editados pelos entes da Federação; linhas de crédito foram abertas para pessoas físicas e jurídicas de micro, pequeno e médio portes; medidas paliativas foram adotadas para ajustar as relações de trabalho durante a crise.

Porém, a crise avança e atinge quem parecia, à primeira vista, capaz de superá-la com seus próprios recursos: as grandes empresas, os setores essenciais e os grandes empregadores. Está na hora de adotar medidas mais profundas para evitar não mais o risco da peste e, sim, o risco da fome. Não mais apenas o micro e pequeno, mas, seis meses de paralisação depois, também os médios e grandes.

As medidas governamentais adotadas não ofereceram linhas de crédito para empresas de médio e grande porte. Os grandes empregadores, inclusive nos setores definidos como essenciais e que seguiram produzindo e provendo bens e serviços, já ultrapassaram o limite do que podem suportar sem que haja alguns rearranjos em custos antes não ponderados.

Peguemos como exemplo o setor das comunicações e tecnologia da informação. Sem esse setor, o leitor sequer teria tido acesso a este texto, menos ainda à internet pela qual o recebeu e sem a qual já teria desabado a economia virtual que está sustentando o que resta de economia real. Esse setor é constituído por 137 mil empresas, que empregam mais de 2,2 milhões de pessoas e, em dados anteriores à decretação da pandemia, era responsável por 7% do PIB nacional. Hoje, seu impacto é sensivelmente maior. Uma plataforma digital recentemente anunciou ter, ao longo dos meses de quarentena e distanciamento social, aportado mais de 100 mil colaboradores – não empregados, colaboradores que vendem produtos seus ou da plataforma. É geração de renda. Mas a realidade é marcada pela intensa flutuação de mão-de-obra. O setor emprega muito, porém perde muita mão-de-obra. Perda de mão-de-obra resulta, por uma questão cultural marcadamente brasileira, muito frequentemente em litígio trabalhista. E aqui está um ponto a ser equacionado no universo de desequilíbrios gerados pela Peste e que podem levar à Fome.

Em março de 2019, o Tribunal Superior do Trabalho contava 3,53 milhões de processos em fase de execução. Com a perda generalizada de emprego, a quantas andará esse número? O foco em manter empregos hoje colide com a obrigação de honrar as obrigações com os já desempregados. Milhares de empresas dificilmente conseguirão formular acordos trabalhistas, inclusive após a superação do estado de pandemia, pois várias estão quebrando. O êxito da retomada dependerá muito de uma atitude solidária e sinérgica de trabalhadores, empregadores, Justiça do Trabalho e Governo, tendo como prioridade, no sentido figurado, a sobrevivência dos negócios, mas, no sentido literal, a sobrevivência de pessoas e famílias que logo não terão como pagar para ter o que comer.

A equação desse problema é proposta em três frentes:

1) Parcelamento das dívidas trabalhistas em fase de execução em processos judiciais;

2) Garantia de parcelas de, pelo menos, um salário mínimo ao mês, por até sessenta meses;

3) Correção da dívida pelo INPC.


A frente 1 reduz o peso do desembolso total mensal do empregador.

A frente 2 garante valor superior ao prestes a findar “auxílio emergencial”, de R$ 600,00, e ao aventado, porém ainda não proposto, “renda brasil”, cujo valor, ainda indefinido, não há registro no debate de que venha a ultrapassar R$ 300,00.

A frente 3 traz a tempo presente a correção monetária de dívidas trabalhistas, que segue sendo feita por índices que, hoje, são considerados ganhos financeiros difíceis de serem atingidos no mercado.

Esse equacionamento assim proposto permitirá que mais empresas honrem débitos trabalhistas e que mais pessoas recebam recursos que escasseiam numa economia de fim dos tempos. É preciso romper o círculo vicioso de indenizações que provoquem mais demissões que gerem mais processos judiciais, tudo se retroalimentando.

A alimentar um círculo vicioso, é melhor alimentar a família. Que a Peste não nos leve à Fome.

Vivien Mello Suruagy, engenheira, é presidente da Feninfra Federação Nacional de Infraestrutura de Redes de Telecomunicações e Informatica

 
 
 

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